Por uma teoria das maldições
J. Tagus
(janeiro de 2024)
No caminho da mão esquerda a vontade pessoal é levada em alta conta. Somos seres racionais — na medida do possível, e está tudo bem —, com sentimentos e desejos. Não abdicamos disso em prol da sujeição a uma outra vontade "maior". Esse comportamento, algo masoquista, é típico dos teísmos de matriz abraâmica. Dar a outra face, pagar o mal com o bem etc. é sua recomendação doutrinária. Em nossa opinião, isso é absurdo. Se devolvemos o mal que recebemos com o bem, como o próprio bem que recebermos será pago? A injustiça salta aos olhos. Tais religiões falham retumbantemente em equacionar as implicações éticas ínsitas a si. Não nos referimos à questão do perdão; pessoas mudam e podem perceber o erro. Uma justiça "implacável", que não admite segundas chances, é irracional e bárbara. Mas é justo e legítimo que os malfeitores empedernidos, que nos fizeram — ou aos nossos entes queridos — algum malefício recebam a devida paga.
A realização de desagravos contra inimigos traz um benefício evidente para as relações sociais. Somos seres gregários; vivemos em coletividade. Na filosofia política se fala no "contrato social", o abrir mão da liberdade absoluta que caracteriza o estado de natureza, a lei da selva, diríamos, em prol da segurança da vida em sociedade. Há uma questão de custo-benefício. Temos ônus como obediência à lei, pagamento de tributos, submissão ao poder de polícia etc., mas em contrapartida recebemos a prestação da atividade estatal, na forma de segurança, serviços públicos em geral etc. O direito existe exatamente por isso; é a regulação da vida social, como define Clóvis Beviláqua, uma das principais mentes do Código Civil brasileiro de 1916.
Então, vejamos. Um dos requisitos básicos na vida em sociedade é o respeito ao próximo. Mas esse respeito não é necessariamente inato e depende de alguns fatores (criação familiar, escola, temperamento pessoal). Daí é importante que haja elementos de coação que estimulem ou, pelo menos, que punam os casos, ao menos os mais graves, em que esse respeito não seja observado. O direito entra aqui, por exemplo. São crimes a calúnia, a difamação, a injúria e outras condutas que afetem a esfera pessoal "do outro". Contudo mesmo o direito é falho e não cobre todas as situações — talvez o agravo sofrido não justifique movimentar a pesada máquina judiciária, que envolve altas custas judiciais, demandas que se arrastam por anos a fio, exposição pessoal etc., e tudo isso para muitas vezes receber uma negativa de sua excelência o juiz.
Isso não significa que devemos tolerar que o agressor passe impune.
Aqui entra o papel da maldição e sua importância na pacificação social, vale dizer, no respeito entre habitantes da mesma coletividade.
Vejamos: o praticante de magia não necessariamente se expõe. Eu inclusive sugiro discrição. De modo que, isso sendo verdade, podemos estar cotidianamente lidando sem saber com magistas, bruxos e bruxas. Talvez o vizinho, a moça do caixa, o bancário. Rigorosamente todos podem ser interessados nas artes arcanas. Ter isso em mente tem influência direta no nosso trato diário com as pessoas ao redor. Assim, se estamos abertos à possibilidade da velhinha no mercado ser uma feiticeira, estaremos inclinados a tratá-la melhor. Afinal, o menor deslize, a menor palavra fora de lugar, ofensiva ou mesmo apenas impertinente, pode redundar em uma praga contra nós. Uma praga que pegue. Que demande um certo trabalho para ser retirada. E ninguém quer passar por isso. Portanto, o medo de ser magickamente atacado leva a uma maior dose de respeito entre indivíduos.
Reforçando o ponto. O respeito ao próximo está longe de ser inato ou um estado natural das coisas, lamentavelmente. A vida em sociedade portanto vai necessitar de regras que obriguem a isso sob pena de sanções. Contudo o regramento social é falho; a polícia é seletiva, o Judiciário é lento e moroso e assim por diante. Ou simplesmente o agravo sofrido seja de menor monta e não mereça que se lhe dedique tempo e dinheiro, ainda que o ofensor faça jus a sua dose de castigo. Entra aqui a punição mágicka. É modalidade do gênero "justiça pelas próprias mãos", é claro, mas aqui sem infringência direta à lei dos homens.
Justiça pelas próprias mãos, eu digo. Há um agravo que precisa ser reparado. Essa reparação tem um efeito altamente salutar nas relações humanas. Poucas coisas são tão deletérias ao tecido social do que esse "dar a outra face" da mítica cristã. Se o sujeito faz o mal e não recebe punição, continuará fazendo. A vítima que não reage permite indiretamente que haja novas vítimas. Pouco importa se digam que "um dia", em um futuro que desconhecemos, o "karma" chegará. São situações para além de conjectura e que não possuem verificabilidade prática. O que temos, concretamente, é o malfeitor se safando.
Da lei dos homens, talvez; não das nossas maldições.
Antes de prosseguirmos vejam que foco no conceito do senso de justiça. O magista, aquele que pratica a arte de buscar influir na realidade para a realização do seu intento, trabalha diariamente suas emoções. A "Grande Obra" é a construção pessoal cotidiana. Nesse sentido, não agimos de forma tola, fútil, meramente vingativa. Ainda que interesses egoístas possam estar por trás de nossas ações — e o nosso caminho é resolutamente o da mão esquerda — somos movidos por sentimentos nobres. Nossas maldições são postas portanto sob os auspícios de Xangô da Justiça e das forças kármicas do universo, aqui não mais o "karma" ingênuo dos "good vibes" paz & amor, mas as terríveis energias cósmicas que podem ser invocadas para o desagravo e reparação de malfeitos.
O amaldiçoado tem, sem perceber, uma chance de ouro para sua melhoria pessoal. Diz-se que a pena, no direito — seja no penal seja no cível, com suas punições pecuniárias — tem caráter pedagógico. O réu extrai uma lição da punição. Pensará duas vezes antes de repetir a conduta. Evitará agir da mesma forma. Não é isso melhor para a paz social do que o "dar a outra face" cristã? Uma praga cai com todas suas forças sobre a cabeça do elemento. Seu mundo estará abalado, suas convicções, suas relações pessoais postas à prova. Isso não força necessariamente uma reflexão sobre a vida? Ainda que não se saiba a origem do infortúnio, isto é, ainda que não se saiba que é vítima da ira justa de um magista, o sujeito tem diante de si a possibilidade de meditar sobre sua existência, extrair lições e, dessa forma, melhorar enquanto indivíduo.
Muitos sequer estão abertos a essa possibilidade. Azar o deles, não é problema nosso.
Se estamos aqui sob a égide da justiça, conforme sustento, a dosimetria da pena também obedecerá a imperativos de justiça. A pena é proporcional ao agravo, diz a justiça dos homens, e a nossa justiça cósmica não seria diferente. Digo isso sobretudo para acalentar os escrupulosos que, ainda influenciados pela moral cristã, têm a consciência pesada pela praga lançada. Tolice. O universo devolve a justa medida; Exu, o agente universal do karma, é sábio. Não somos nós os agressores. É o malfeitor que, infrator das regras sociais de conduta, receberá a justa paga.
Nesse sentido, evitemos pragas tipo "que Fulano perca isso", "que Fulano sofra aquilo". As forças kármicas que manipulamos sabem retribuir justamente. Agravantes e atenuantes são postos na balança; magistrados humanos lidam com isso e, decerto, magistrados de outra ordem — vocês entendem o sentido disso — lidam de forma muito melhor. Que Fulano se foda bem fodido; isso basta. A praga pega. Como e em que medida, deixemos para o universo.
Vela vermelha na encruza, talvez um cigarro ou o que mais quiser. Expor a demanda a Sêo Tranca Ruas, aquele que "toma conta e presta conta", como diz o ponto cantado. Não há problema em fazer isso com raiva; se vamos amaldiçoar é porque, justamente, temos raiva. Se a raiva se justifica e será aplacada não nos compete saber. Magia, afinal, e escrevi isso em outro texto, é buscar influir na realidade conforme nosso intento. A resposta não é garantida. Nosso intento ressoa em um mar caótico de forças e vibrações diversas. O ato está em colocar a vontade; apresentá-la, firmá-la. Isso é a magia.
Feito o intento, esquecer. É claro que se estamos tão putos a ponto de rogar a maldição, soa curioso pedir para que simplesmente esqueçamos o negócio todo. Mas é uma questão de assepsia emocional. Sentimentos como raiva e mágoa ressoam negativamente em nosso corpo e alma. Carregá-los conosco tem efeito deletério em nosso cotidiano. Ora, quem deve ter sobre si energias negativas é o malfeitor que amaldiçoamos, e não a vítima. Que o malfeitor carregue sobre si o peso kármico de suas consequências. A vítima, tão logo formalize magickamente o seu desejo de vingança, não precisa mais pensar nisso — a demanda já está entregue a forças outras.
Falei em assepsia acima e talvez a imagem melindre alguns, mas acho a comparação pertinente: lavamos nossas mãos sujas para nos livrarmos dos germes. Feito isso não perdemos mais um único segundo de vida preocupados com bactérias e vírus eliminados. Não pensamos neles. Água e sabão deram cabo dos sacaninhas e lá foram ralo abaixo. Com o inimigo de carne e osso o trato deve ser o mesmo. Raios e trovões sobre a cabeça do maldito; e que vá se foder para lá, para longe de nós. Não queremos mais saber deles, sequer ouvir falar.
Evidentemente, pode ser que notícias cheguem e saberemos, se é que a confirmação fosse necessária, que a praga pegou bonito. Nesses casos, ainda que você já tenha feito a paga, é decente e digno pagar novo tributo às forças kármicas para reforçar o agradecimento. Saber que há justiça traz uma sensação de conforto emocional indescritível. E devemos nutrir o sentimento de gratidão ao universo — cria-se uma sinergia e um círculo virtuoso. Os sofredores e masoquistas, tão pios, que continuem dando a outra face e sofrendo indignidade atrás de indignidade porque "Deus quis".
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