Da função do banimento


J. Tagus
(janeiro de 2025)

Ainda que o universo esteja permeado de magia e rotineiramente a pratiquemos sem perceber, o ato consciente e deliberado da prática mágicka requer preparação. Isso vale para qualquer atividade humana, evidentemente. Se vamos trepar, nos banhamos, separamos os itens — preservativos, lubrificante e o que quer que o seu kink demande. Pintar um quadro, escrever um livro ou fazer pão são a mesma coisa. É preciso se dispor àquilo e entrar no estado de espírito adequado. É claro que muita coisa é feita de improviso e inesperadamente, e decerto a vida seria muito chata se fôssemos pautados por um manual caga-regra. Como caoístas e portanto abertos à aleatoridade e ao fluxo constante da vida, rejeitamos "cartilhas". Contudo, somos seres racionais. Magia é buscar influir na realidade conforme nosso intento. Nesse sentido precisamos estar despertos, precisamos saber o que queremos.

Quero sugerir, para avançarmos no ponto, que pensemos agora nos muçulmanos. As cinco orações diárias — e, conforme o ensinamento seguido, até atos como pegar o Corão — são precedidas do wudu, a lavagem corporal ritualística. O crente lava mãos, antebraços, rosto, pés. Ainda conforme o ensinamento adotado, pode haver uma prescrição meticulosa (jeito de realizar os gestos, a sequência das partes corporais lavadas etc.) mas o que importa é o objetivo, qual seja, a purificação para o ato de oração. Não havendo água, é admitido que a ablução seja feita, simbolicamente, com areia. Eu penso que o hábito tem um caráter de profilaxia, de higiene, evidente e seria útil já por isso; mas há outra utilidade óbvia. Ao performar a ablução antes de começar a reza, o devoto já entra em modo "on". Não é apenas o corpo, e sim a mente que se prepara. A ablução, a lavagem do corpo que prepara para as orações é uma antecâmara, uma sala de descontaminação. As comezinhas preocupações cotidianas ficam suspensas e o crente está no limiar do diálogo com Allah, o Oniouvinte, o Sapientíssimo.

Podemos utilizar o exemplo mais terrenal do esporte. Experimente aquela pelada no churrasco sem fazer o aquecimento antes. O primeiro drible da vaca que tentar vai te deixar uma semana à base de dorflex. Claro que não falo aqui de preparos de alta performance, mas antes de arriscar, com sua barriga de chope de sedentário, aquele enérgico pique para cruzar na área, é recomendável antes tocar uma bolinha de leve para preparar o corpo. Aquecer, entrar no ritmo.

Creio que já é possível adentrar o tema do banimento mágicko. Os exemplos que dei falam de preparação, de entrar no ritmo, na sintonia, no espírito da coisa. Em magia o banimento tem esse caráter: é abrir a porta para o trabalho mágicko. É nos colocar no estado mental adequado para performar conscientemente a arte mágicka. 

Como realizar o banimento? Aqui me choco com os ortodoxos (mesmo ditos caoístas) e cagadores de regra em geral. Cada um na sua, claro, nothing is true, everything is permitted, vocês conhecem isso bem. Rejeito as complicadas ritualísticas, mil gestos assim e assado. Se isso fosse necessário, aliás, a urban magick seria inviável. Se estamos imersos na magia cotidiana, como digo no primeiro parágrafo, não é possível parar tudo e gesticular teatralmente como um doido no meio do povo. Magia é intento; pode ser realizada mentalmente, em silêncio e descrição. 

Há várias possibilidades. Vejamos algumas sugestões. Por exemplo, imagine um campo de força de luz envolvendo seu corpo. Observe os pontos de luz ao redor — lâmpadas, postes na rua, a lua etc. — e se imagine luminosamente da mesma forma. Esse campo de força é inquebrantável; nada entra, a menos que você autorize e seja para seu bem. É um espaço seguro, um traje de astronauta ou de escafandrista. Envolto naquela luz, que precisa apenas ser visualizada, como dito, você está apto para iniciar o trabalho mágicko. 

Outro exemplo. Tenho meu sigilo pessoal de proteção. Gosto de imaginá-lo nos quatro cantos de um quadrado em cujo centro estou. Mentalmente, me decido a entrar em tempo mágicko — o quadrado é ativado e os sigilos se incendeiam, erguendo colunas de fogo e fumaça. O quadrado tem a mesma função do campo de força de luz do exemplo anterior: é um espaço seguro onde posso, com segurança, praticar magia.

Cada um na sua, digo novamente. Magia, sendo arte, é criativa — inúmeras formas são possíveis. Alguns gostam de rir; Grant Morrison, em sua "Pop Magic!", diz que uma risada genuína é o mais efetivo ritual de banimento. Visualize o que quiser, faça gestos no ar, o sinal-de-cruz, o que quiser. O objetivo é entrar no estado de espírito adequado.

Banimento feito, o ato mágicko pode ser realizado.

Ao final, assim como a porta foi aberta, é preciso que seja fechada. Temos portando o banimento inicial, que inicia o ato, e o ato final que, eh, finaliza o ato. A ideia é exatamente a mesma, mas em sentido contrário: agora se trata de voltar à realidade cotidiana. Novamente, vale o que quiser mas é de bom tom, por coerência, que seja utilizado o mesmo método do banimento inicial. Visualize o campo de luz estourando como uma bolha de sabão, por exemplo. Ou ainda estalar os dedos, dizendo (ou pensando), "deu", "pronto", "foi". Outra gargalhada histriônica, quem sabe. Pronto — retornamos do tempo mágicko, cá estamos com os pés no chão novamente.

Há outro sentido para o termo "banimento". Costumamos utilizá-lo quando nos referimos a coisas desagradáveis — sentimentos, pensamentos, energias, presenças, entidades. Bani-las, aqui, tem o mesmo sentido de um "exorcismo". O banimento tem nesse caso a função de um desinfetante psíquico. Rotineiramente precisamos fazer isso, pelo bem de nossa saúde mental e espiritual. Por que carregar miasmas conosco? Também aqui as opções são variadas. Um bom banho em água corrente somado a mentalização faz milagres. Banhos de ervas, como qualquer sacerdote de cultos afro-indígenas pode ensinar, são ótimos. Gritar um "vaza!" enérgico também serve. E tocar em frente, pois não adianta banir algo mas continuar preso em pensamento àquilo. Não se trata de "recalcar", no sentido psicológico (isto é, de varrer para debaixo do tapete do inconsciente, o que não resolve o problema e apenas o deixa oculto à espreita), mas da opção voluntária de não gastar energias emocionais com coisas que não valham a pena.

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