Criando o próprio panteão


J. Tagus
(maio de 2025)

A humanidade não é algo homogêneo e sim uma miríade de povos com suas respectivas culturas. Quero abordar isso no sentido religioso — a religião é um fenômeno tão antigo quando o homem, desde os deuses uranos e solares, os primeiros contatos com o mistério da existência conforme Mircea Eliade aborda em seu clássico "Tratado de história das religiões". E, em cada canto deste planeta, esse fenômeno "humano, demasiado humano" que é a expressão religiosa se manifesta de forma única mas, também, estranhamente familiar.

Estranhamente para os profanos que não percebem que tais similitudes demonstram, ou no mínimo indicam, que há uma mesma direção, no sentido vetorial. As coisas apontam para a mesma direção. Mas esse não é o tema do texto, em todo caso, e vamos nos concentrar na diversidade de formas em que o sentir religioso se manifesta. Deuses da colheita temos em todo canto. Da guerra, também, e da saúde e da prosperidade e assim por diante — todos os aspectos da vida humana são divinalmente cobertos. Todos, ao que me consta. Até o padroeiro da cerveja temos, Santo Arnulfo, que passei a saudar sempre ao abrir um latão. E, se há deuses e santos para todos os gostos, nos mais diversos cantos do mundo, começa a briga sectária: qual é o mais poderoso? Qual é o verdadeiro? Ou, mesmo, qual é o "verdadeiro"? Porque o sectarismo traz consigo o integrismo, a pretensão de possuir a verdade absoluta, como diz Roger Garaudy. Se o meu deus é o verdadeiro, o seu é... falso, desculpe. 

Então, vejamos. Todos os credos e práticas mágickas, espiritualistas e religiosas trazem prescrições como "não mexa com isso senão..."... "não fale isso do deus/entidade/espírito tal senão..." e por aí vai. O contato com o sagrado se torna um momento de horror indizível. Há quem queira, para manter sua pseudoautoridade e domínio, que as coisas sejam dessa forma, mas esse não é o tema do texto. Vamos lá: o deus X do povo Y de tal lugar do mundo pode ser poderosíssimo. Pode ter criado os céus e as terras (e tudo o mais entre eles!). Acontece que o povo K de outro lugar do mundo pode nunca ter ouvido falar desse deus X. Cultuam, digamos, o deus P. Outro paradigma, outra concepção, outra forma de sentir o sagrado. Para o povo K o deus X, tão poderoso, pode ser uma nulidade. Povos escarnecem de deuses alheios. Belzebu é uma zoação judaica contra Baal. Jesus Cristo é meme desde há muito tempo e, cuidado!, charges sobre Muhammad suscitam ondas de revolta (ou fiquemos no exemplo dos "Versos Satânicos" de Salman Rushdie, até hoje com uma fatwa contra sua cabeça). Ao que consta, ninguém tem sido fulminado por jeovás vingativos. Mas segue sempre a ameaça para que não se mexa com o deus ou entidade tal. 

Deixo claro que não estamos adentrando aqui o campo jurídico da proteção da liberdade e do respeito de crença; são valores civilizatórios que devem ser resguardados. Crimes contra o sentimento religioso e racismo religioso são temas sérios de legislação penal. É claro que a liberdade religiosa não é absoluta nem irrestrita e a crítica deve ser garantida, mas os preconceitos, sobretudo quando adquirem caráter violento, devem ser devidamente combatidos. Mas nossa abordagem aqui é outra; eu estou falando, teoricamente, em um confronto puramente teológico — quais afinal são os deuses verdadeiros? 

A resposta choca os ortodoxos de todos os tipos, e isso é bom: todos são verdadeiros. E nenhum deles. Entendem a subjetividade? Aquilo é verdadeiro a partir do momento em que eu considero aquilo verdadeiro. Se nada falar à minha alma ou intelecto, é falso. Pode ser verdadeiro para você, mas não para mim. Não, obrigado; fique com seu verdadeiro que eu fico com o meu.

Avancemos no raciocínio. Imaginemos uma baita tempestade, relâmpagos por todo lado e trovões de ensurdecer. Aflitos, pensamos em — não custa nada — rezar pedindo o fim da tormenta. Rezar a quem? A Iansã? Santa Bárbara? Thor? Todos têm domínio sobre o raio. Quem é que vai dar a palavra final? Digamos que Iansã quer que a tempestade continue, mas Thor não. E agora? Evidentemente se você é um iorubá devoto de Iansã não terá o menor conhecimento sobre um Thor "viking" e vice-versa, mas, ora — a pergunta segue em aberto, quem é o manda-chuva?

Avancemos ainda. Há Iansã, Santa Bárbara e Thor (e seguramente diversos outros, conforme a época e local do planeta), mas sobretudo... há a tempestade. Essa sim é perceptível e é a mesma em qualquer lugar do mundo. O ponto que quero colocar é: a tempestade existe e é indiferente como chamemos as forças que lhe comandam. Será seu próprio paradigma, sua própria afinidade, sua própria convicção pessoal que dará àquelas forças o nome de Iansã, Santa Bárbara ou Thor. Ou Zé. A roupagem é coisa nossa e o astral está para além disso.

Usemos outros exemplos. A guerra; a saúde; a riqueza e prosperidade; os mares; as matas. E assim por diante. Diz Jung que há tantos arquétipos quanto situações da vida, e isso se aplica aqui. Todas essas situações e conceitos são regidos por forças, se assim quisermos acreditar — deuses, entidades, espíritos etc., novamente como quisermos acreditar. O nome não importa, dê o nome que você quiser. Imagine-os como quiser. O importante é que faça sentido para você.

No Islã há um hádice (hadith, a tradição oral) qudsi que fala exatamente isso. Eu sou como meu servo acredita que eu seja, diz Allah. A divindade é transcendental em relação à temporalidade mundana. Iemanjá não é uma mulher preta. Sequer é mulher. Ser preto e ser mulher são atributos humanos. Como é uma divindade de povos pretos Iemanjá é retratada como uma mulher preta e isso é perfeitamente normal, mas as forças e energias dos mares, que ela representa, estão além disso. Da mesma forma Thor é loiro de olho azul porque os nórdicos que o adoravam eram loiros de olho azul, mas, novamente — o raio e a tempestade não têm nada a ver com fenótipos. Criamos os deuses à nossa imagem e semelhança? Segundo o "Gênesis" teria sido o contrário...

Proponho portanto que nos atentemos ao conceito, e não a nomes. Sejamos agnósticos no ponto e deixemos em aberto a possibilidade de existir um "ser" chamado Iansã, outro Thor etc.; como eles se entendem no astral — já que reinam sobre os mesmos elementos — é outra história. Mas, mesmo  que existam, estão dentro do mesmo conceito. Então trabalhemos o conceito, que engloba tudo. Velocidade! Que tal abordarmos velocidade? Hermes (ou Mercúrio) vem à mente, não? E que tal... The Flash da DC? Ou Sonic the Hedgehog. Aqui já adentramos a pop magick e talvez assim a ideia fique mais clara. Pouco importa se os velocistas da ficção existem ou não, assim como pouco importa a existência "real" de um Hermes lá no Olimpo; o que importa é que sabemos o que é ser rápido, sabemos o que é precisar de velocidade diante de uma situação da vida (por exemplo no atraso para um compromisso crucial). 

Pois bem! Diante desses e outros apuros cotidianos, façamos mágicka! Que, como já definimos aqui, é a arte de buscar influir na realidade... A nosso favor. Evocar (ou invocar, nenhuma diferença aqui) os deuses faz parte do jogo. Deuses, quais? Aí é com você. Crie seu próprio panteão, é o mote deste texto, que já está grandinho e por isso continuaremos no próximo.

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