Explicando nossa definição de magia


J. Tagus
(dezembro de 2023)

Magia é a arte de buscar influir na realidade para a realização de nosso intento.

Explicando os elementos da definição.

Arte, porque exige criatividade, inovação e inspiração (1). O marxista polonês Adam Schaff diz que o indivíduo é um "microcosmo específico", uma "estrutura irrepetível" (2). Ninguém é igual a ninguém, afinal cada um de nós é fruto — e agente! — de processos personalíssimos. A magia, que é emanação dessa individualidade inerente a cada um, também será exclusiva a seu modo. Não há dois quadros pintados iguais, ainda que os pintores pertençam à mesma escola; cada artista imprime sua marca pessoal que é inimitável, irreproduzível. Por que com magia seria diferente? Grimórios e cartilhas são apenas demonstrativos de uma forma de fazer, dentre inúmeras formas. Incatalogáveis formas.

Não é por acaso que um dos "pais" do caoísmo seja o artista plástico Spare, com suas técnicas de criação de sigilos que nos fazem lembrar os tempos de lápis de cor, pincel e tinta da escola. A disposição dos elementos em um altar, as cores da vela, os ângulos sinuosos de um sigilo, a aparência gráfica do servidor, a sonoridade do mantra ou do zikr (3), padrões da fumaça do incenso. Estar aberto magickamente a isso demanda sensibilidade artística. Façamos arte.

Buscar influir na realidade. Óbvio, porque querer nem sempre é poder. Cessemos com as ilusões de onipotência, pois sim? Que às vezes uma vitória infinitesimal já é prova mais do que suficiente da realidade da magia. O nosso intento não está sozinho no mundo. Interage com um sem-número de outros intentos, favoráveis e desfavoráveis, amigos e hostis; incide nessa equação a natureza caótica do universo, com suas contradições, choques, conflitos, viragens, guinadas. A magia consiste então em "querer conseguir", sendo o "conseguir" em si um detalhe, digamos assim, a satisfação — isto é,  a realização, a conclusão — do intento mágicko, mas não seu elemento definidor.

Ter isso em mente nos ajuda a evitar frustrações e decepções. É razoável pensarmos também nestes termos: qual a diferença entre sucesso e fracasso? Ambos são subjetivos e suscetíveis de abordagens por diversos ângulos. Voltemos à natureza caótica do universo do parágrafo anterior. Em um universo de indeterminação, não é possível que, querendo A, eu tenha obtido B e B se revelado melhor para mim? Não quero aderir aqui a um teísmo clássico de ideias tipo "Deus sabe o que faz", consolo tradicional diante de insucessos, mas sim admitir que o universo tem caminhos que desconhecemos.

Para a realização de nosso intento. Óbvio. Não cabe mais aqui o "seja feita a vossa vontade", a submissão aos desígnios misteriosos de um deus desconhecido. O magista não pede; decreta. Se vamos efetivamente conseguir essa realização é outra coisa. A magia não pode ser entendida em termos finalísticos. Isso seria um pragmatismo reducionista. Sendo arte — um dos primeiros elementos da categorização que adotamos e vimos acima — ela existe enquanto prática, enquanto feitura, e como tal existe e é real pelo simples fato de ser realizada. O resultado final é desejado e mesmo a própria razão de termos recorrido a ela, mas é um complemento, um exaurimento, digamos assim, mas não o elemento definidor. 

Aqui cabe a diferenciação entre "magia" e "religião" feita por Bertrand Russell. Diz o galês que a magia é protociência, por partir do pressuposto de que dadas as mesmas condições (isto é, o mesmo ritual), são obtidos os mesmos resultados. Há um nexo de causalidade. Ao passo que a religião, prossegue Russell, atua no campo do miraculoso, não havendo portanto nenhuma relação de causalidade possível (4).

Creio que essa distinção russelliana é central para o ponto que queremos demonstrar. Não me apego à questão da ritualística, da realização das mesmas condições, dos mesmos experimentos, isto é, a parte instrumental que faria da magia a aludida protociência. O que acho importante aqui é que, na magia, conforme Russell, há a intenção deliberada pelo resultado. Acredita-se poder concretizar o intento. Já a religião é coisa diferente — no caso da religião, estamos sujeitos à vontade alheia, de Deus ou dos deuses. Nesse caso, não há o que possamos fazer. Não há "mandinga" que possa submeter a vontade divina. Ao contrário, nós é que estamos sujeitos; não há mesmo correntes cristãs, como a calvinista, que pregam que a "salvação" decorre da "graça", isto é, de um prêmio de loteria que independe de mérito ou de esforço próprio? Sob esse paradigma somos joguetes. Não é estranho que tenham surgido, diante de concepções de tal jaez, teses gnósticas de sobre como estamos nas mãos de demiurgos voluntaristas e autoritários, nada nos restando fazer senão cairmos de joelhos e implorar. Deuses tribais que exigem ser adorados, não é disso que trata o "Velho Testamento"?

Rejeitemos isso.

O caminho mágicko, portanto, é o da imposição de nossa própria vontade ao universo. Isso nada tem a ver com egoísmo ou egocentrismo. Ao contrário, é uma abordagem profundamente humanista e emancipatória. Reconhecemos nosso poder e divindade. Vós sois deuses, não é dito nos Evangelhos (5)? Estamos tomando, por conseguinte, posse de nossa própria autoridade. Pouco importa se fomos criados ou não à imagem e semelhança de Deus ou dos deuses. O que sabemos é que estamos aqui de pé, seres racionais, e temos diante de nós todo o universo — e queremos impor nossa vontade a ele. Se assim será, não podemos saber; se o universo tem seus próprios planos não podemos saber. Isso também pouco importa. Crianças de colo e os animais estão submetidos a desígnios desconhecidos. Nós, magistas conscientes, impomos nossos próprios desígnios. Ainda que os desconhecidos também possam estar nos submetendo, isso pouco importa. Sejamos rebeldes, que seja.

Penso que a definição que demos é suficiente no momento para explicar o fenômeno mágicko. Ela é claramente incompleta. Arte de buscar influir na realidade para a realização de nosso intento pode significar rigorosamente qualquer coisa que implique em agir no mundo, por exemplo carpintaria, advocacia, a extração de um dente ou demais atividades humanas. O que diferencia a magia, portanto, é o meio utilizado ou as premissas nas quais se baseia. Aqui é tudo nebuloso — como caracterizaríamos esses meios? De "não-convencionais"? Magia seria então a arte de buscar influir na realidade para a realização de nosso intento utilizando meios não-convencionais. Porém muitas coisas podem ser "não-convencionais" e isso portanto nada ajuda. Muitos profissionais são heterodoxos em seus ofícios e isso não faz deles magos. Meios "sobrenaturais"? Seria pueril. Não há nada acima da natureza. 

Em verdade, nenhuma definição é exata; toda definição tem algo de arbitrário e mesmo autoritário, afinal "definir é limitar", dizia Oscar Wilde. Por outro lado, definições nos ajudam a compreender o objeto de interesse. Ficamos portanto com uma definição imperfeita, mas além do limiar não conseguimos transpor. 

Notas

(1) Frater Xon, "El Mago Ecléctico vs.el Mago del Caos". Clique aqui para acessar.

(2) SCHAFF, Adam. "O marxismo e o indivíduo", trad. Heidrun Mendes da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

(3) Zikr é a repetição de nomes sagrados e fórmulas religiosas nas cerimônias do sufismo islâmico.

(4) RUSSELL, Bertrand. "História do pensamento ocidental", trad. Laura Alves e Aurélio Rebello. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.

(5) João, 10:34.

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