A questão da maestria


J. Tagus
(março de 2024) 

É provável que ao mergulhar nas diversas tradições o buscador se depare com portas instransponíveis. Terá diante de si "mestres" supostamente detentores de conhecimentos profundos não acessíveis aos reles mortais. Conhecimentos que "só" eles sabem e mais ninguém. Fazem mistério e suspense em torno disso; criam histórias, valorizam ao máximo sua posição de autoridade. Na verdade, nem é um saber tão inacessível assim — talvez pagando o curso ou a bagatela da iniciação, quem sabe? E o véu de Ísis é assim desvelado.

Em minha opinião isso é a nostalgia de uma época em que os sacerdotes eram a única "voz autorizada", os únicos intermediários entre os deuses e os homens. Pensem na Babilônia e no Egito antigo. É um poder incrível, não? Sua casta ser "a" detentora do saber. É interessante que o próprio protestantismo, ao qual podemos devotar inúmeras críticas, há mais de meio milênio sepultou a intermediação quando Lutero colocou as Escrituras ao alcance do sujeito do povo. Isso sim é coerente; a relação com a divindade afinal é personalíssima e exclusiva. Sobretudo se somos caoístas, não admitimos "autoridades" sobre nós e, muito menos, cagando regra sobre tal dialógico contato com o além.

O que é autoridade, afinal? Refiro-me às realmente dignas do nome. Não são as que precisam se impor, decerto. Evocar a própria autoridade é mostrar que já não tem nenhuma. Respeito não se impõe e nem é decorrência de uma dado objetivo qualquer — ter tantos anos, ter lido tantos livros, ter tantos cursos superiores etc.

É possível que alguém que não tenha nada disso seja muito mais digna do nosso respeito.

Evidentemente respeitamos a idade, a cultura formal e assim por diante; há méritos nisso. Mas nada disso é determinante, nada disso em si é atestado de valor.

Retomando o fio da meada, o detentor de tal poder — ele é "o" fodão, ele é "o" detentor do conhecimento — se sentirá muito pouco inclinado a abrir mão dessa posição de vantagem. Pelo contrário, reforçará mais e mais a importância do seu papel, daí tantas elegias a mestres e à importância do professor; e ao veto da busca pessoal e da autoiniciação, porque tudo isso, se aceito, redundará na aceitação de sua superfluidade.

Amigos, tenham em mente: "autoiniciação" em verdade não existe. Estamos sempre pisando em trilhas alheias. Ninguém está redescobrindo a roda; desde que o homem é homem estamos às voltas sobre os mesmos problemas. O simples fato de saber ler pressupõe uma educação básica pretérita. O buscador solitário, isto é, aquele que mergulha no conhecimento sem subordinação a professor ou ordem, segue sendo o discípulo de toda uma tradição anterior. Livros são mestres. Foram escritos por alguém e são repositórios de uma tradição. E não apenas os livros ou material escrito; aprende-se diariamente na conversa e observação cotidiana das e com as pessoas ao redor.

Ser mago é ser um eterno aprendiz, ainda que pareça piegas colocar as coisas nesses termos. Não há um nível máximo de saber; os eventos mas comezinhos podem agregar ao conjunto do nosso conhecimento. Nesse sentido, "graus", como os fornecidos por ordens de todo tipo, têm muito de ilusório e vão. A minha opção caoísta se reflete também nesse aspecto, o da rejeição ao cerimonialismo formal. Rejeito a burocratização da vida mágicka.

Oportuno dizer que, sim, não se pode jogar pérolas aos porcos. Podemos considerar que há conhecimentos que não podem ser despejados de forma leviana sobre os leigos. Oportunistas e picaretas ou, na melhor das hipóteses, pessoas confusas e "fogo de palha" pululam no meio ocultista. Concordo que o conhecimento deva ser resguardado nesses casos; compreenderei e mesmo concordarei com as ressalvas e filtros que, nesses casos, detentores do saber possam levantar. Mas tudo com parcimônia e bom senso. Há quem cave raízes e encontre tesouros, como escreveu Gibran ou alguém em sua linha; é possível que o mero curioso acabe por ter a vida mudada ao se deparar com algo mais profundo. Será você, ó bonzão mestre dos magos, que obstará isso? À irreverente moda caoísta, é bem possível que alguém lhe mande enfiar o conhecimento no cu.

Portanto aproveite o silêncio da noite e sintonize essa maestria da qual nunca nos apartamos na realidade. Fale com a ancestralidade. Com aqueles que te acompanham — e que querem seu bem e progresso, e isso precisa ser claramente firmado para que sejam excluídos quiumbas e obssessores —, com tudo aquilo que te inspira e alimenta o espírito. Leia livros e converse com as pessoas. Ainda que escrevamos este texto conforme visões caoístas, é possível que você pertença a alguma escola ou tradição religiosa. Trave contato constante com seus dirigentes, nesse caso. Dentro dos cânones respectivos essas pessoas são referências. Mesmo que rejeitemos a ideia de "autoridade" condicionando nosso contato com o sagrado, como falamos acima, respeitamos as convicções sinceras, os estudos e anos dedicados à formação do sacerdócio, qualquer que seja. Nós não seguimos ninguém, mas caso você siga, por coerência deve estar atento àquilo que sua egrégora de escolha ensina. 

Mestre não é quem ensina, mas quem de repente aprende, diz Guimarães Rosa. Nesse sentido desconfie dos sabichões sempre seguros de si. Nossa condição humana é repleta de contradições, dúvidas e incertezas. O mestre digno desse nome não se colocará acima disso; humanos, vamos todos aprendendo e ensinando reciprocamente na construção diária de nossa "Grande Obra" pessoal. Nunca perca isso de vista, meu jovem padawan.

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