A divindade em você
J. Tagus
(julho de 2024)
Um dos traços característicos do caminho da mão esquerda é o reconhecimento pelo indivíduo de seu próprio poder. O paradigma submisso, que tem sido marca da tradição abraâmica que nos sujeita a jeovás todo-poderosos, é desconstruído e dá lugar a uma nova visão de mundo. Nela estamos sobre nossas próprias pernas e olhamos altivos. Não quer dizer que sejamos os "bonzões" — estamos cientes dos nossos defeitos e imperfeições, na "dor e delícia de ser o que é", como diz a música de Caetano Veloso. O processo de autoconhecimento faz parte do caminho mágicko. É a integração do self, o ser quem somos, na psicologia analítica junguiana. Conhecemos nossos defeitos; e avançamos para corrigi-los. Nós mesmos, não os jeovás todo-poderosos.
Poder na fraqueza. Isso soa contraditório, talvez. Mas, também contraditoriamente, tomar conhecimento de nossas limitações nos fornece cargas inauditas de energia. Os "campeões em tudo" não existem; isso é coisa do poema de Fernando Pessoa. Em Baudelaire, Satã, derrotado, reaparece cada vez mais brutal. Não quero ao dizer essas coisas parecer um coach motivacional; mas se falamos de magia a sério não podemos deixar de olhar para dentro e encontrar, e fazer com que venha à luz, essa força interna que todos nós temos.
Avancemos mais algumas casas. Reconhecemos nossa força apesar dos nossos defeitos, ok. Isso é humano. E que tal um salto mais ousado e reconhecer que há divindade nessa humanidade? Que ser humano é divino. Não há nada de muito novo em dizer isso. "Every man and every woman is a star", diz o "Liber AL vel Legis" dos thelemitas e gente é para brilhar, no poema de Maiakóvski. Em verdade a Antiguidade clássica está repleta de deificação. Na "Ilíada" os herois são "parelhos aos deuses", são "semelhantes aos imortais". Ao incorporar o esforço, a coragem, a beleza, a força, o heroi incorpora igualmente atributos divinos — o humano torna-se divino, já não é possível discernir um do outro. Esse sentir humanista foi redescoberto século depois no Renascentismo europeu. Vejam o primor de um "Davi" de Michelangelo. Ou a Capela Sistina, do mesmo, em que Adão e o Criador se tocam face a face.
O homem não é apenas divinizado. Os deuses também se fazem homem. Há o Verbo se fazendo carne, no Evangelho de João, e na tradição vaishnava temos Vishnu em seus avatares. No "Ramayana" desconhece sua divindade, ou finge desconhecê-la. Sou apenas um mortal da linhagem de Dasárata, diz Rama, para ser instado pelos deuses: — Não, Excelência, és Narayana, o mantenedor de tudo.
Um deus que não sabe que é deus; e nós, sabemos? Sóis deuses, está no aludido João, 10:34.
Sejamos.
O caminho da mão esquerda tem particularmente isso em alta conta e podemos mesmo dizer que é seu traço característico. O reconhecimento de nosso próprio poder. Nossas potencialidades, nossos atributos. Isso de querer ser o que somos ainda vai nos levar além, diz Paulo Leminski.
Evidentemente isso deve ser entendido de forma saudável. Não faço aqui um apelo à megalomania dos césares. Reconhecer o próprio poder implica em reconhecer a própria fraqueza. Defeitos e imperfeições fazem parte do que somos. Deuses de pés barro? Não temos ilusão de onipotência. Como praticantes da arte mágicka, buscamos impor nosso intento ao universo. A arte está nesta busca. O universo, esse mar cósmico de aleatoriedade e incertezas, responde conforme n variantes. À moda panteísta, diríamos talvez que a divindade está em tudo e que tudo é divino; nossa própria divindade interage entre tantas. Nesse sentido, não estamos mais em posição de submissão mas somos deuses entre deuses.
Em sua oração, ou como você chama o momento em que dialoga e sintoniza suas divindades e guias, acostume-se a também a saudar sua própria força. Coloque a si próprio no panteão. Cada ser humano é um "microcosmo específico", uma "estrutura irrepetível", como diz o marxista Adam Schaff. Não há e jamais haverá nada igual a você. Reverencie isso. Novamente, não se trata do ego, al-Nafs, a vaidade. O objetivo não é fomentar megalomanias nos insanos. É de algo muito mais simples, o encontrar nossa própria natureza. Pês no chão. Pés na terra. Isso nos diminui? Muitíssimo pelo contrário, sendo a terra a mãe nutriz de tudo.
Penso agora nos versos de Maiakóvski sobre, como traduzidos por Carrera Guerra, o pai e a mãe são pelo menos o Universo e a Terra, respectivamente. Pessoas que têm esse entendimento em si, sejam magos do caos ou materialistas dialéticos — ou eu que sou ambos — não aceitarão menos. O chamado é para uma vida que seja liberta de mesquinhez.